O nome de Carl Bernstein estará sempre associado a um dos episódios mais gloriosos da história da imprensa mundial. Com o colega Bob Woodward, Bernstein foi o responsável pela cobertura do caso Watergate para o jornal The Washington Post. Watergate revelou crimes cometidos dentro da Casa Branca, derrubou Richard Nixon da presidência dos Estados Unidos, e Bernstein e Woodward viraram ícones do jornalismo. Trinta e oito anos depois do escândalo, Bernstein continua no ofício (entre outras atividades, escreve para a revista Vanity Fair) e mantém a preocupação com a preservação da liberdade de reportagem e dos valores do bom jornalismo, num ambiente de mudanças na mídia.
Bernstein participou, no Rio de Janeiro, de um seminário sobre a liberdade de expressão promovido pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (Emerj), pela Associação Brasileira de Empresas de Rádio e Televisão (Abert) e pela Associação Nacional de Editores de Revistas (Aner). Antes de embarcar para o Brasil, ele conversou com Época.
Quem é: Tem 66 anos e mora em Nova York, EUA. Começou no jornalismo aos 16 anos no jornal Washington Star, que circulava na capital dos Estados Unidos.
Prêmios: Pela cobertura de Watergate, ganhou em 1973 o Prêmio Pulitzer, o mais aclamado da imprensa americana.
O que publicou: Com Bob Woodward, escreveu "Todos os homens do presidente", sobre o caso Watergate. Publicou também biografias do papa João Paulo II e de Hillary Clinton.
Época – O senhor é visto como um símbolo dos tempos heróicos do jornalismo impresso e do poder da imprensa. Por causa da revolução digital e da internet, a mídia impressa vive uma crise, principalmente nos países mais desenvolvidos. Como o senhor vê o futuro da imprensa?
Carl Bernstein – Há muitos lamentos sobre a morte dos jornais, mas sou muito cuidadoso em fazer prognósticos generalizantes sobre o futuro da imprensa. Não há dúvida de que a leitura do jornalismo impresso como conhecemos está diminuindo. Uma razão é porque há uma geração que cresceu pegando as notícias na internet. A internet mudou a forma como nos informamos em todos os aspectos. Aqui nos Estados Unidos, meu sentimento é que alguns jornais vão continuar a prosperar. Podemos ser reduzidos a três ou quatro jornais nacionais, mas com uma audiência maior do que eles tiveram no passado. Mas minha preocupação não é essa, nem com a plataforma pelas quais as notícias serão distribuídas. Minha preocupação se refere ao que devemos fazer para conservar nas novas plataformas os melhores padrões e tradições de reportagem que as grandes instituições jornalísticas conseguiram estabelecer no século XX.
Época – É possível reproduzir o tipo de jornalismo que o senhor fez na cobertura do caso Watergate hoje em dia, nos tempos do jornalismo on-line?
Bernstein – É preciso reconhecer que aquilo que fizemos no caso Watergate – eu, Bob e o The Washington Post – é o mais clássico tipo de reportagem, aquela que busca a mais aproximada versão da verdade. Nós tivemos o luxo de ter uma história e de poder segui-la adiante e a vantagem de trabalhar num jornal que valorizava acima de tudo a precisão e a reportagem dos fatos dentro do contexto certo. A preocupação com esses valores se tornou mais difícil hoje em dia nos Estados Unidos por causa dos cortes nos estafes das redações de jornais e revistas. Ao mesmo tempo, o ambiente para o jornalismo tornou-se mais difícil. Antes, tínhamos os jornais locais, as revistas nacionais e as três redes de televisão aberta. Hoje, há uma proliferação de mídia. Além das TVs a cabo, há milhares de blogs e sites.
Época – O senhor concorda com a opinião de alguns especialistas, para quem a internet pode matar o jornalismo investigativo?
Bernstein – Em geral, a web, como está configurada hoje, não tem os melhores padrões jornalísticos porque ela não investe em reportagem dos fatos dentro do contexto. Eu tenho essa crença de que toda boa reportagem tem de buscar nuances e contexto. Fatos empilhados não são necessariamente a verdade, mas o contexto reflete a verdade. Hoje, o que se lê muito na internet é opinião e até preconceitos políticos ou ideológicos. Dito isso, é preciso dizer que algumas grandes instituições, como o The New York Times, The Washington Post e The Wall Street Journal, têm feito uma transição de sucesso de suas edições para a internet e um jornalismo de alto nível também na web.
Época – O sociólogo americano Paul Starr, da Universidade Princeton, escreveu um ensaio de grande repercussão sobre a ascensão da internet e o fim da era dos jornais, em que ele prevê o aumento da corrupção na sociedade americana por causa da diminuição do poder de fiscalização da imprensa. O senhor partilha esse temor?
Bernstein – Dizer que os jornais impediam, no passado, a corrupção simplesmente não é verdade. É errado glorificarmos demais os velhos tempos. Porque os velhos tempos tinham muito mau o jornalismo também. Grandes reportagens nem sempre eram a regra. É preciso ressaltar que não é função da imprensa derrubar governos. Essa é uma função do povo, dos representantes que ele elege para o Congresso e das instituições. Se um governo caiu no caso Watergate, isso ocorreu porque o sistema e as instituições funcionaram. Se o sistema e as instituições falham no combate à corrupção, isso pode ser um reflexo também de que a sociedade e seus valores podem ter mudado.
Época – O bom jornalismo está relacionado aos valores de uma sociedade?
Bernstein – Não podemos separar o jornalismo da sociedade. A imprensa reflete a cultura de um país, seus valores educacionais e sociais. Muitos dos problemas do jornalismo atual são problemas culturais da sociedade. Constato aqui nos Estados Unidos que a sociedade se tornou menos reflexiva e mais frívola. Então, o jornalismo também se tornou menos reflexivo e mais frívolo. Há uma voracidade por fofocas, sensacionalismo e por respostas rápidas e fáceis para questões difíceis. Ao mesmo tempo, o interesse pela verdade difícil e complexa está decrescendo. Em geral, a verdade não é branca nem preta. Às vezes, ela é. Mas ela frequentemente está numa zona cinzenta.
Época – O que o senhor acha de iniciativas jornalísticas como a ProPublica (fundação criada nos EUA, financiada por patrocinadores privados e sem fins lucrativos que investe em reportagens investigativas e ganhou neste ano o Prêmio Pulitzer, o principal do jornalismo americano)?
Bernstein – Qualquer iniciativa que incentive a boa reportagem é uma boa ideia. Não tenho opinião sobre a sustentatibilidade desses projetos e se eles se transformarão em um modelo no futuro. Digo isso porque, em geral, acredito que qualquer generalização sobre o futuro da imprensa é especulação pouco produtiva.
Época – Como o senhor vê as tentativas de controle da mídia em alguns países da América Latina por governos populistas de esquerda como o de Hugo Chávez, na Venezuela, e o de Cristina Kirchner, na Argentina?
Bernstein – As tentativas de restrição e de cerceamento do trabalho da imprensa e da reportagem livre e honesta são sempre uma coisa terrível. Não importa se elas partem de governos de esquerda ou de direita. A busca da versão mais aproximada da verdade depende de boas reportagens. Não se alcança essa verdade com motivações ideológicas. As restrições à imprensa ocorrem em toda parte. Aconteceram na América Latina, no período das ditaduras militares. Acontecem nos Estados Unidos. O importante é que a imprensa cumpra seu papel e resista a esse cerceamento. No caso Watergate, houve muita pressão contra a publicação de reportagens, mas o Washington Post resistiu.
Época – Como o senhor avalia a atuação da imprensa americana na cobertura da Guerra do Iraque e dos anos Bush na presidência?
Bernstein – Com a exceção de algumas instituições, poucas organizações jornalísticas nos EUA foram suficientemente céticas e desconfiaram das proclamações do governo Bush de que o Iraque escondia armas de destruição de massa. Os repórteres não tinham acesso ao conteúdo dos relatórios de inteligência como tinham os integrantes do governo. Mas faltou contextualizar, com o devido destaque, que o presidente Bush e os homens que o cercavam queriam ir à guerra no Iraque. Avalio, no entanto, que a reportagem da imprensa americana sobre os anos Bush, em muitos aspectos, é brilhante. Quase tudo o que sabemos sobre a incompetência e o caráter desonesto do governo Bush se deve ao trabalho dos jornalistas americanos. (Guilherme Evelin)
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