Na periferia de Marabá, sudeste do Pará, o projeto
inicial para a localização de ruas e casas previa o formato de uma castanheira,
com um grande caule e as folhas apontando para diversas direções. Seria uma
forma de homenagear a árvore símbolo das primeiras ocupações em Marabá e
adjacências. Como é costume ocorrer, o planejamento piloto original descambou
para um amontoado de casas, vielas e becos, com o inchaço populacional
aglomerando mais e mais pessoas em áreas quase insalubres.
É num labirinto de ‘folhas’, quadras e lotes em Nova
Marabá que Laísa Santos Sampaio passa a maior parte dos dias, ao lado de alguns
dos 12 filhos – quatro biológicos, os outros adotados – e quatro cachorros
pequenos que recolheu das ruas. Tem sido assim desde a manhã de terça-feira, 24
de maio de 2011.
Naquele dia, dez anos de ameaças foram cumpridos. O
casal extrativista José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da
Silva, do Projeto de Assentamento Praia Alta/Piranheira, no município de Nova
Ipixuna, equilibrava-se em uma moto na tortuosa e lamacenta estrada de terra
que liga o assentamento ao centro de Nova Ipixuna, também sudeste do Pará,
quando foram surpreendidos por tiros vindos da mata.
José Cláudio e Maria do Espírito Santo foram
tocaiados quando passavam de moto numa estradinha de terra que ligava o centro
do município de Nova Ipixuna à casa deles. Ele teve a orelha cortada, talvez
para indicar que o crime havia sido executado. Arrastados, os corpos ficaram à
beira da estrada durante horas.
Dois anos depois, o crime foi a julgamento. Apenas o
autor dos disparos, Alberto Lopes do Nascimento, e o ajudante dele,
Lindonjonson Silva Rocha foram condenados. Nascimento recebeu pena de 45 anos
em regime fechado. Rocha, 42 anos e oito meses. O principal acusado de ter sido
o mandante do crime, José Rodrigues Moreira, recebeu absolvição.
Selando
o terceiro caixão
Irmã de Maria do Espírito Santo, Laísa recebeu o
resultado do julgamento quase como uma sentença de morte. Aos 47 anos, sabe que
a própria vida está em grave risco. As ameaças ao casal assassinado
estenderam-se a ela também. “Defino o final do julgamento como o pior dia da
minha vida”, diz ela na sala da casa quase sem decoração em Marabá. “O
julgamento foi pior, porque no dia do assassinato ninguém sabia de nada. Só
sentimos a dor. Quando chega na Justiça e o resultado é o que se viu, é muito
mais forte que o dia do assassinato. Estão selando três caixões”, diz.
Laísa Sampaio e o marido, José Maria Gomes Sampaio,
o Zé Rondon, estão sendo ameaçados de morte desde o assassinato. As ameaças vêm
de pessoas que provavelmente fizeram parte do consórcio dos proprietários de
terras, madeireiros e carvoeiros que assassinaram o casal.
Professora no projeto de assentamento, Laísa teve
que alterar drasticamente a rotina. Quando vai até Nova Ipixuna, precisa avisar
a polícia. Uma viatura a acompanha. Em casa, evita ficar; e sozinha também não
sai de casa. Em Nova Ipixuna, recusou proteção porque “só existe uma viatura no
município, não tem como eu ficar querendo que ela cuide só de mim”.
O lote de Laísa e Zé Rondon fica a 50 km do centro
do município de Nova Ipixuna. Área de antigos castanhais, cada vez mais raros.
O marido permanece lá. No projeto de assentamento, ele coordena o Grupo de
Trabalhadores Extrativistas, fabricantes de produtos retirados diretamente do
que a floresta oferece: sabonetes, óleos, fitoterápicos, cremes. Os produtos
foram testados e aprovados pela Universidade de São Paulo, uma prova concreta
da possibilidade de outros usos para a mata, além da extração ilegal de madeira
e das carvoarias.
No momento da entrevista, Zé Rondon liga; no curto
diálogo, Laísa diz estar bem, falando com jornalistas.
Só depois do assassinato da irmã e do cunhado de
Laísa, devido à forte repercussão que o caso teve no Brasil e no exterior, o
Ibama desencadeou uma operação no assentamento para destruir fornos de
fabricação de carvão e fechar as sete serrarias clandestinas localizadas no
município. A partir daí, as ameaças a Laísa aumentaram. Um cachorro seu foi
baleado. E um pequeno memorial de homenagem aos parentes assassinados, no justo
local da emboscada, amanheceu um dia cravado de balas.
Trajetória
de migrações e conflitos
A violência não é tão estranha à família de Laísa,
desde que o pai largou o Maranhão atrás de uma terra prometida pelo governo
militar no início dos anos 70. Vieram para trabalhar na agricultura, mas o pai,
como num inventário das atividades típicas da região, arriscou ser castanheiro
e garimpeiro. Chegaram como agregados na terra de um conhecido. Terra era
artigo barato no período, e logo a família conseguiu 20 alqueires de terra,
próximo à rodovia PA-70, em São João do Araguaia.
Época de guerrilha, confrontos de militares e
militantes do PCdoB. Tempo de toque de recolher, medo e prisões. Mesmo assim,
havia confiança e esperança aos migrantes chegados ao Pará. O pai de Laísa
conseguiu a terra dando de entrada uma máquina de costura Vigorelli. Terminou
de pagar com a colheita da primeira produção de arroz.
“Eu tinha oito anos e muito medo de sair de casa,
porque meu pai falava dos ‘terroristas’. Ele dizia ‘tevorista’. Meu pai
defendia os militares. É engraçado, porque o pai do meu companheiro escondia
guerrilheiros. Minha mãe sempre lembrava uma fala do Padre Cícero, dizendo que no
final dos tempos apareceriam os que iriam tomar a terra dos outros. Meu pai
achava que os guerrilheiros iam fazer isso”.
As histórias de migração no Pará, principalmente a
partir da implantação da ditadura militar, refletiram-se em projetos grandiloquentes
e incentivos a práticas de monocultura. Madeireiras e fazendas de boi tiveram
todo o apoio oficial para se instalar no sul e sudeste do estado. Ao mesmo
tempo, homens sem terra, principalmente do Nordeste, eram incentivados a fincar
os pés na ‘terra de leite e mel’, como a Amazônia era alcunhada na propagando
oficial.
Mas a história de violência na região vem de antes.
Desde o desbravamento feito nas matas do sul do Pará com os ciclos de castanha
e garimpos de diamante e ouro, a bala fez parte da abertura de caminhos.
Meio século atrás, o projeto de assentamento Praia
Alta/Piranheira não passava de uma extensa área de castanhais, onde moravam
índios da etnia Gavião. Foram aniquilados por gente como Coriolano de Sousa
Milhomem, o Coriolano, nome lendário em Marabá por ser considerado um dos
maiores exterminadores de índios na região. Tinha como companheiro um homem
chamado Argemiro que, reza a lenda, alimentava os cachorros com fígado de
índios mortos por ele. Foram esses ‘desbravadores’ que expulsaram os Gavião e
começaram a dividir os lotes de terra.
O pai de José Cláudio Ribeiro adquiriu um lote de um
homem que havia comprado a terra diretamente de Argemiro. Em 1991, uma pesquisa
socioeconômica feita na região por um órgão do governo federal constatou a
forte presença ainda de castanha, açaí e cupuaçu. Com esses dados em mãos,
entidades como a Comissão Pastoral da Terra e Fetagri iniciaram a ideia de
implantar um projeto extrativista que utilizasse os recursos florestais sem
desmatamento. Em 1997, o projeto foi implantado. As terras não eram mais
devolutas.
José Cláudio e Maria estavam entre os contemplados
no projeto, e Zé Cláudio tornou-se presidente da associação que congregava os
extrativistas. “Foi quando Maria disse que ‘nasceu’ para o movimento social”,
lembra Laísa. Começaria a luta contra os fazendeiros, pois cinco grandes áreas
haviam sido ocupadas por fazendas. Três foram logo desocupadas pelo Incra, num intenso
processo de negociação. Mas foram o estopim para que as tensões fossem
acumuladas gradativamente.
Em 2005, a área do projeto passou a ser alvo de
invasões para a retirada clandestina de madeira. Os próprios assentados também
começaram a vender madeiras nobres que ainda existiam na mata. Os conflitos
ganharam proporções maiores quando entraram em cena as carvoarias. “Os
madeireiros ainda deixam o resto da floresta, mas as carvoarias destroem tudo”,
diz Laísa.
Mais enfrentamentos, mais inimigos. Zé Cláudio e
Maria passaram a receber repetidas ameaças de morte. Em 2001, Laísa também
adquiriu um lote no projeto e, convidada por Maria, passou a lecionar na escola
multidisciplinar do assentamento. O nome da escola foi uma ideia de Maria do
Espírito Santo: em vez do nome anterior, Costa e Silva, conseguiu mudá-lo para
Chico Mendes.
Foi numa manhã de 2003 que Laísa sentiu que a irmã
realmente poderia vir a ter um final trágico. No barracão da escola, cuja
parede chega até a metade da altura, enquanto lecionava, Laísa percebeu a moto
se aproximando. O uso de capacetes, algo incomum nas estradas de terra dos
municípios paraenses, chamou a atenção. A camisa larga do homem à garupa
também. “Professora, não vai que é pistoleiro”, alertou um aluno. “Fui falar
com eles. Era tudo ou nada. Dei bom dia e eles perguntaram pela Maria do
Espírito Santo. Eu disse que ela não estava por lá, mas como nosso tom de voz
era parecido, deu para perceber que eles achavam que talvez eu pudesse ser ela.
Ficaram fazendo perguntas para ver se eu entrava em contradição”. O condutor da
moto ficava acelerando, enquanto fixava os olhos em Laísa. “Diga ao Zé Cláudio
que a gente volta no sábado”, avisaram antes de partir. Ao saber, Zé Cláudio
disse que estaria esperando...
Oito anos depois, em 24 de maio de 2011, a morte
anunciada se fez cumprir. Laísa lembra: “Eram oito horas quando o ônibus parou
e a servente da escola veio com as mãos na cabeça, dizendo: ‘Ele acabou de
morrer, é o Zé Cláudio’. Não sou de chorar, mas fiquei tremendo. Pedi carona de
moto pra um aluno e fui até o local. O primeiro que vi foi o corpo do Zé
Cláudio. Eu acho que tentava me enganar, porque achava que a Maria não tinha
morrido. Vi uma poça de sangue na frente do corpo do Cláudio, mas não era dele.
‘Cadê ela?’, perguntei. Aí virei e vi o pé dela”.
“Foi assassinato. Tua irmã está morta”, ouviu não
sabe de quem. “A sensação de desamparo foi grande, mas na hora pensei: ‘tinha
de ser assim. Dois meses antes ela tinha me dito que se encontrasse um
pistoleiro queria que ele a matasse primeiro para não ver o Zé Cláudio tombar”.
A partir daí, Laísa relata que “tudo de ruim” passou
a ocorrer. Ela e o marido começaram a receber recados. Pessoas de dentro do
assentamento que conheciam os que viriam a ser acusados avisavam que ela devia
tomar cuidado. “A gente não recuou, mas o pessoal do assentamento pedia para
que me calasse, que eu iria acabar como minha irmã”.
Teve de sair do assentamento, passou sete meses em
Marabá. Depois desse período voltou ao lote. Retornou às aulas, sem saber se
voltaria para casa ao fim de cada dia. Vivia sob tensão. Um dia, uma aluna
perguntou se ela não podia deixar de se locomover de moto no trajeto, pelo
menos uma vez. “Perguntei por que e ela disse que depois eu iria saber”. No dia
seguinte, Laísa saiu de casa às quatro da manhã, “antes que os pistoleiros
acordassem”.
A organização Anistia Internacional soube da
situação de Laísa Sampaio, e ela entrou no Programa de Proteção de Defensores
Humanos. Sempre que precisa se deslocar a algum lugar mais distante, como o
próprio assentamento, é acompanhada por policiais. Em casa recusou a proteção
permanente por achar que ‘isso não é vida’.
Nada que a deixe tranquila. Mas Laísa não se abate.
Ainda em 2011 teve uma surpresa indesejada: descobriu um aneurisma no lado
esquerdo do cérebro. Especialistas em Belém e Recife, ao analisarem os exames,
chegaram à mesma conclusão. Uma intervenção cirúrgica poderia produzir sequelas
como cegueira, sem que as chances de cura do mal chegassem a 40%.
Laísa segue em frente. É ativa em casa e no
assentamento. Organiza as mulheres extrativistas, assume a linha de frente que
pertenceu à irmã. Sabe que o tempo pode ser pouco para tanta coisa que precisa
fazer ainda. “Em 2012, passei o ano correndo da morte. Em 2013, estou correndo
em busca da vida. Sei que diante das ameaças e de tudo o mais tenho que ter fé
e coragem”, diz. “Nesse momento só tenho a fé”. (Ismael Machado)
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