sábado, 17 de agosto de 2013

Crônica de um assassinato no campo


Havia acabado de tomar o ônibus em direção a São Félix do Xingu, município vizinho a Xinguara, no sul do Pará. O relógio marcava 7h45 da manhã. A lembrança vinha-lhe com insistência à cabeça, enquanto seguia o percurso da viagem que lhe tomaria pelo menos três horas. “Não se mete na minha vida”, repetia para si mesmo a frase que dirigira, em tom ríspido, ao irmão, César (nome fictício). Inutilmente, ainda na rodoviária ele tentara lhe convencer a não retornar para a fazenda Vale do Triunfo, onde Welbert Cabral Costa trabalhava como tratorista e agora voltava para reclamar uma quantia em torno de R$ 18 mil, valor referente a direitos trabalhistas não remunerados enquanto esteve de licença por conta de um acidente.
De zombaria, os colegas de serviço chamavam-lhe de “Beliche”, desde que havia caído do segundo andar da cama do alojamento do trabalho. Estava no emprego há pouco tempo: começara em maio. Com o braço machucado, teve de se afastar. Agora que estava de retorno, mal sabia o trabalhador rural, porém, que deveria dar crédito às suspeitas do irmão. Welbert seria assassinado na noite daquele mesmo dia, 24 de julho de 2013, na porteira de entrada da fazenda. Receberia um único e frio tiro na nuca, aos mesmos moldes de uma execução, após ser impedido de ingressar no local. Até quarta-feira (14), seu corpo continuava desaparecido.
Embora pudesse não saber, lidava com gente poderosa. A Agropecuária Santa Bárbara Xinguara – dona da fazenda Vale do Triunfo – tem entre seus acionistas o Grupo Opportunity, ligado ao banqueiro Daniel Dantas. A empresa é uma das maiores criadoras de gado para corte do Brasil e já foi acusada por crimes ambientais, grilagem de terras e trabalho escravo. Possui hoje mais de meio milhão de cabeças de gado, distribuídas entre seus 500 mil hectares de terra, uma área equivalente a três vezes o município de São Paulo. Tanto o Opportunity quanto Dantas aparecem, entre outros episódios, na Operação Satiagraha, deflagrada no começo de 2004 para investigar um grande esquema de corrupção, lavagem de dinheiro e desvio de verbas públicas. Além disso, a região, no sul do Pará, é conhecida pela pistolagem e frequentes ameaças e assassinatos de camponeses.
No entanto, soubesse qualquer coisa sobre o momento de morte, talvez o ser humano desistisse da vida. Na última vez em que Welbert esteve com a família, pai, mãe, tio, irmãos, esposa e seus três filhos, o maior com apenas cinco anos de idade, o irmão já havia lhe avisado, antes de partir em viagem, sobre os cuidados com uma estranha proposta que recebera. Um gerente da fazenda informara ao tratorista que negociaria um acordo referente ao dinheiro por receber na sede da propriedade, situada na zona rural de São Félix do Xingu. “Ninguém faz acordo no meio do mato”, alertara César, depois de afirmar que um acerto do tipo deveria ocorrer no escritório da empresa, logrado em Redenção, município das redondezas, e não em algum canto escuro de um latifúndio qualquer.
No ônibus para São Félix, o celular toca. Dessa vez, era a sua irmã Janaína (nome fictício) quem falava. Insistia no mesmo ponto do irmão, a pedido da mãe. Seus familiares queriam convencê-lo de desistir da ideia. “Isso tudo tá muito estranho”, dizia. Sem sucesso. Welbert estava determinado a seguir em frente. Não haveria por que desistir, afinal, já estava perto; chegava a São Félix e agora só precisaria providenciar um meio de transporte até a fazenda. “Prometo voltar amanhã [dia 25 de julho]”, respondeu-lhe. Encerrou afirmando que poderia ser encontrado em um número de telefone qualquer e desligou.
Por R$ 100 alugou o veículo de um mototáxi local. Devolveria a motocicleta ao proprietário assim que voltasse da fazenda com as pendências trabalhistas resolvidas. Seria, entretanto, a última vez que pegaria a estrada vivo. Mais cinco horas de viagem e outras tantas de discussão à porta da fazenda separavam o tratorista do disparo que colocaria, contra a própria vontade, um ponto final na reivindicação de direitos trabalhistas.
Chegou à portaria de entrada da fazenda Vale do Triunfo às 17h30. “O senhor não pode entrar. Deram-me ordem para não te deixar passar”, disse um segurança local, barrando-lhe o acesso. Irritou-se. Viera de Xinguara somente para tratar disso. Não poderia ser tão difícil. Só precisava cobrar o que lhe deviam na sede da propriedade, pegar a moto para voltar à cidade, devolver o veículo emprestado e então comprar na rodoviária as passagens de volta para casa. Nada mais, nada menos. Deveria ser simples. Exaltado, insistiu que tinha de resolver a situação; que a empresa lhe devia dinheiro; que um gerente da Santa Bárbara havia lhe chamado até lá para resolver isso; que não era pouca coisa; que o valor girava em torno de R$ 18 mil; que precisava entrar; e que não sairia de lá… Em vão. Enquanto Welbert repetia os motivos, o guarda requisitava apoio pelo rádio.
Um carro surge, e então dois homens descem de uma camionete S-10 branca. Eram Maciel Nascimento e Divo Ferreira. Este parecia carregar algo protuberante no bolso. Dizia-se na região que costumava andar armado. Eles continuaram a impedir a entrada de Welbert, e o primeiro segurança que lhe havia impedido de entrar vai embora. O tratorista volta a argumentar. O tempo passa. Nada se resolve. A discussão continua. Ele tinha de resolver a situação. Lembrou à dupla que a empresa lhe devia dinheiro; que um gerente da Santa Bárbara havia lhe chamado até lá para resolver as coisas; que não era pouca coisa; que o valor girava em torno de R$ 18 mil; que precisava entrar; que não sairia de lá… Anoitecera. Já era 19 horas, e Welbert então é rendido no escuro. Sua última lembrança seria um frio pedaço de ferro encostado à nuca.
Testemunha e investigação
A certa distância da portaria da fazenda, uma testemunha ouvia algo semelhante ao disparo de uma arma de fogo. Ao longe, viu Divo Ferreira baixando o braço com algo em punho e Welbert caído ao chão. Junto ao homem, outra pessoa colocava Welbert na caçamba da S-10 branca. Os dois entram na camionete e vão embora pela estrada escura.
O desaparecimento do tratorista teria se desenrolado nesses moldes, de acordo com os depoimentos – obtidos pela reportagem – de testemunhas e pessoas ligadas ao trabalhador rural cedidos à Polícia Civil do Pará, que segue investigando o caso. Os relatos levantam a hipótese de que o corpo de Welbert teria sido jogado em alguma vala no caminho que liga a cidade ao lugar na zona rural por onde a fazenda se estende.
Nos últimos dias 10 e 11, os policiais realizaram uma diligência nas imediações da propriedade para procurar pelo cadáver da vítima e provas do crime. Segundo o delegado à frente das investigações, Lenildo Mendes dos Santos, pelo menos duas armas de fogo e cartuchos dos mais variados calibres foram apreendidos no local. A presença de outras munições levantou a suspeita da presença de ainda mais armamentos ilegais nas imediações da propriedade.
Divo Ferreira e Maciel Nascimento, acusados de terem executado o assassinato, estão foragidos. Autoridades pediram prisão preventiva dos dois. Lenildo acredita no envolvimento de dirigentes da Agropecuária Santa Bárbara Xinguara no caso. “Imaginamos que os mandantes podem ser pessoas de alto escalão”, afirma. (Guilherme Zocchio/Fonte: Repórter Brasil/colaboração de Stefano Wrobleski)

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