Continuação da entrevista com Dalmo Dallari concedida a Flávia Tavares e publicada no jornal O Estado de S.Paulo (21-06-2009).
Flávia Tavares – A estrutura mudou na República?
Dalmo Dallari – Em 1891, o Brasil fez uma adaptação para o modelo americano, com destaque para a figura de Rui Barbosa, que conhecia bem o sistema dos EUA. Estabeleceu-se como lá o princípio da separação de poderes. Em relação ao Legislativo, decidiu-se por um sistema bicameral, com os senadores eleitos pelo povo e dando ao Senado o poder de revisão. Por conveniência, para estabelecer um paralelismo com os EUA, as províncias viraram estados. Mas só no nome. A figura do senador como representante dos estados, no Brasil, não tem sentido, porque os estados brasileiros não são soberanos. Eles podem tomar decisões sobre uns assuntos, mas não sobre outros, reservados ao poder central. Mesmo nos EUA não são tão soberanos assim. Chamar as antigas colônias de estado foi um artifício para criar a fantasia de que elas continuariam autônomas mesmo sob um governo comum.
FT – A Constituição define os senadores como representantes dos estados da Federação?
DD – Sim, mas a nossa é uma falsa federação, porque temos falsos estados. O Artigo 46 da Constituição diz que o Senado se compõe de representantes dos estados e do Distrito Federal. Mas, de fato, não há nenhuma justificativa para que, além dos representantes do povo, haja representantes dos estados, tão dependentes que são do governo central. Senão, por que não criar também uma câmara federal para representar os municípios? Afinal, nosso federalismo é de três níveis.
FT – Por que os senadores não agem para aumentar a autonomia dos estados que eles representam?
DD – Porque a medida que existe para que eles manipulem o poder é suficiente. Não há interesse de ampliar essa autonomia, só pensam em brigar pelo poder.
FT – Quem está ganhando essa briga?
DD – As oligarquias ficaram muito fortalecidas, tanto que duram até hoje. Existem esquemas políticos estaduais que dominam o sistema político. Os oligarcas mantêm o povo em situação de dependência. O Maranhão é o estado brasileiro com maior índice de analfabetos. Isso gera uma submissão total, porque os mais pobres ficam gratos quando têm escola ou hospital e reelegem aquele senador. Como os oligarcas estaduais têm muita força eleitoral, acabam usando isso para composições políticas. Para que o governo central tenha apoio de um estado, é preciso negociar com os parlamentares de lá e a influência do senador nisso é enorme.
FT – Mas José Sarney teve de sair do Maranhão para se eleger no Amapá.
DD – Porque surgiram tantas denúncias contra o grupo Sarney que a situação ficou insustentável. O Maranhão tem uma história de miséria e isso fez com que surgisse uma oposição forte, que começou a esclarecer os eleitores e fez com que a base de Sarney fosse diminuída. Estive no Amapá há algum tempo e, quando perguntei a alguns moradores se eles eram de lá, a maioria respondia ser do Maranhão. Era a população transplantada pelo Sarney para se eleger senador no Amapá. Pessoas miseráveis que continuaram miseráveis em outro lugar, mas profundamente agradecidas pelo pedacinho de terra que ganharam para sobreviver.
FT – Sarney chegou à Presidência da República e optou por voltar ao Senado. Por que não seguir o caminho de agir nos bastidores da política?
DD – Ele volta porque gosta de se sentir um senhor feudal. Com isso, além de conseguir benefícios pessoais, ele beneficia também seus amigos e sua família. Agora, o espaço dos senhores feudais está diminuindo gradativamente. Ainda vai levar um tempo, mas já está acontecendo.
FT – Nos EUA, na Inglaterra e na França, discute-se o fim do bicameralismo?
DD – Muitos teóricos ingleses admitem que a Câmara dos Lordes é uma fantasia. Ela foi perdendo poder e as decisões são tomadas na Câmara dos Comuns. Na França, o Senado ainda mantém poder político, embora mais restrito, porque desapareceu o dualismo entre o resto da nobreza e a burguesia. Somente nos EUA o Senado é realmente forte, porque é expressão do poder dos estados. No Brasil, não há justificativa teórica nem de organização democrática para a necessidade do Senado. Na prática, o Senado é e sempre foi um anteparo contra excessos democratizantes. O papel que a Constituição lhe atribui é muito mal exercido. Reservaram-lhe algumas funções para diferenciá-lo da Câmara, mas no processo legislativo ele é igual. Por exemplo, ele tem a atribuição de aprovar não só operações financeiras externas da União, dos estados e municípios como também a escolha de um ministro do STF e do Banco Central. E todas as leis têm de passar pelas duas casas. O desaparecimento do Senado não faria diferença no processo legislativo. (continua)
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