Willian Vieira
O ônibus escolar levanta poeira ao entrar em um dos muitos sítios de Porto Feliz, cidadela a 110 quilômetros de São Paulo, famosa pelos haras milionários. Mas são crianças de baixa renda as que descem, em fila indiana, rumo à sala de virtudes da Associação Monte Carmelo. Além de português e matemática, informática e música, o que elas aprendem nessa instituição gratuita mantida pelos bahái’ís são temas tão subjetivos como valores universais. Hoje, por exemplo, é dia de paciência.
A escola foi aberta há 20 anos. Mas a fé por trás dela surgiu há 147, quando Bahá’u’lláh passou a profetizar, na Pérsia (hoje Irã), que “Deus é um, a religião é uma e a humanidade é uma”. Paroxismo do ecumenismo religioso e do ideal de comunidade internacional, a Fé Bahá’í se define pela unidade, mesmo a religiosa. Eles creem num único Deus, sendo todos os profetas manifestações desse espírito. Inclusive Maomé. Por isso a fé é tão perseguida no Irã, onde prisões e assassinatos são comuns e seus quase 7 milhões de adeptos estão espalhados em 178 países. Para completar, a sede fica em Israel, o que alimenta acusações de espionagem internacional.
No Brasil, onde a aceitação religiosa facilita as coisas, a Fé Bahá’í chegou na mala da americana Leonora Armstrong, em 1921. Cresceu nos anos 50. E, hoje, a despeito do desconhecimento, tem mais de 60 mil adeptos em 1.215 cidades, de vilas na Amazônia à aldeia dos índios kiriri da Bahia. Agora, como eles chegaram à bucólica Porto Feliz é uma história mais longa.
De tudo o que Bahá’u’lláh escreveu, o que se destaca é o apreço pela educação. “O homem é uma mina rica em joias de inestimável valor, mas só a educação poderá revelar seus tesouros”, pregou o profeta. Pois foi justamente em Porto Feliz que um casal bahá’í, que ali tinha um sítio entre os cavalos de raça, decidiu revelar seu tesouro, doando-o à associação. Os bahá’ís ergueram uma construção, depois outra. As doações da prefeitura e de indústrias aumentaram. E a aprovação da comunidade veio com o número de crianças atendidas todo dia, cerca de 200.
“Já fomos muito estigmatizados”, diz Moisés de Oliveira, ex-administrador da associação, um sorridente bahá’í que caminha pela praça cumprimentando moradores e perguntando sobre ex-alunos da escola. Ele conta que, há alguns anos, o ônibus e a merenda dados pela prefeitura foram cortados por intervenção de um padre nada simpático à presença de uma religião “de muçulmanos iranianos”, mal-entendido comum no país. “Foi só com o protesto das mães no desfile de 7 de Setembro que eles voltaram atrás”, diz Oliveira, negro de Bauru, que de iraniano só tem o gosto pelo churrasco. “Hoje, a prefeitura nos ajuda e as pessoas querem os filhos na Monte Carmelo porque isso aumenta as chances de emprego. Mas o princípio da escola ainda são as virtudes”.
Meio-dia, e o silêncio na escola só é interrompido pelo relinchar dos cavalos. É nesse intervalo entre as duas turmas que Flávio Rassekh, arquiteto que projetou a sede da escola e acompanhou o crescimento da Monte Carmelo, discute com a coordenadora sobre as obras necessárias para evitar outro roubo de computadores. Filho de iranianos nascido no Brasil, Rassekh fala com a propriedade de quem viveu pelo projeto que melhor mostra a face de uma religião tão universalista, de preceitos vagos, que prega temas polêmicos como “unidade racial” e uma só comunidade mundial.
“Ser bahá’í é amar a humanidade como um todo. Não é uma coisa de domingo. Faz parte da vida”, diz Rassekh, que representa a comunidade brasileira na luta por direitos humanos no Irã. Ele diz que a Fé Bahá’í é a religião do futuro. Em tempos de guerras sectárias, diz, a religião é um bálsamo diplomático. Não há clero ou hierarquia, só homens e mulheres que se juntam para ler, rezar e discutir valores a cada 19 dias, festa ditada pelo calendário seguido. Eles fazem um mês de jejum por ano. Não toleram o álcool. E incentivam o comedimento, inclusive no sexo. De resto, focam-se na educação como “solução definitiva para os problemas do mundo”, seja com jovens que fazem apresentações de teatro ou escolas como a Monte Carmelo.
“Não somos proselitistas; a ideia de evangelização nos dá medo”, afirma Rassekh. “A verdade é relativa sempre, pois o dogma é o empecilho do desenvolvimento”. Os bahá’ís oferecem seus valores, diz, sem conversão. Daí a ideia de que a criança não possa ficar na escola após os 15 anos – idade tida entre os adeptos como a certa para se definir ou não como bahá’í.
Os valores parecem em voga na cidade. A maioria das famílias busca a escola para lidar com crianças difíceis, diz Ana Paula Oliveira, a coordenadora pedagógica. Mas a escola também lida com as famílias. Todo bimestre, uma assistente social e uma educadora vão ao lar e à sala de aula para “investigar” o desempenho da criança. Tudo é anotado num prontuário com o histórico de cada um. “Assim conseguimos levar valores para dentro das famílias”, diz Paula. “E não é fácil. Uma virtude leva duas semanas para ensinar”.
Fato é que as crianças internalizam os valores. “Eu trabalhava, não tinha tempo de cuidar dela o dia todo, então minha prima indicou a escola”, diz Márcia Rodrigues, recepcionista católica e mãe de Gabriele, menina geniosa de 12 anos que há seis estuda na Associação Monte Carmelo. “Ela mudou muito. Hoje me surpreende com temas como veracidade, generosidade”, diz. “Agora ela sempre quer dividir tudo, mesmo chocolate. Chega a ser engraçado”.
Todos parecem satisfeitos, exceção feita apenas aos cavalos vizinhos. Ana Paula conta que a escola tem um projeto no qual as crianças tocam numa banda com instrumentos feitos de material reciclado. Elas adoram. Mas a recepção no paraíso rural ao redor foi menor. Os donos dos cavalos de raça reclamaram que os animais ficavam estressados com a música dos meninos. Assim, um novo desafio foi imposto à Monte Carmelo. Só que parece mais difícil ensinar paciência aos cavalos. (Willian Vieira,
Carta Capital)