O juiz federal Jair Araújo Facundes (foto) dedicou os
últimos dois de seus 43 anos a realizar uma pesquisa para dissertação de
mestrado em que aborda aspectos relacionados aos direitos fundamentais a partir
do estudo de uma reivindicação concreta do direito à liberdade consubstanciada
no caso ayahuasca.
Trata-se do controvertido uso ritual de uma bebida
psicoativa, mais conhecida como Santo Daime, que contém uma substância, o
alcalóide dimetiltriptamina (DMT), proibida em tratado internacional e na
legislação de vários países.
Titular da 3ª Vara da Seção Judiciária do Acre, Jair
Facundes examina decisões proferidas no âmbito administrativo e judicial e
conclui que permitir ou negar o exercício de uma prática religiosa somente se
justifica quando amparada por uma teoria política mais ampla acerca de como os
bens, espaços e liberdades escassos devem ser ordenados no interior de uma
comunidade política que busca se organizar por princípios que garantam a todos
a mesma consideração e o mesmo respeito por parte do governo e da comunidade.
Em certa medida a pesquisa é sobre um processo
registrado em 1974, em Rio Branco, envolvendo Leôncio Gomes, dirigente do
centro original da doutrina do Daime, que foi intimado pela Polícia Federal
para que se abstivesse de fazer uso da bebida psicoativa de origem indígena,
feita a partir do cozimento de duas plantas, conhecidas, entre outros nomes,
por ayahuasca, yagé, uascar, huni etc.
A notificação policial relatava que várias
“organizações altamente especializadas e laudos foram elaborados que comprovam,
sem margem de dúvidas, a periculosidade de tal xarope”. Qualificava a bebida
como droga, e afirmava que seu uso causa mal “não só físico mas à mente”.
Leôncio Gomes moveu uma ação contra o governo em que
pedia à Justiça Federal a proteção do que compreendia como seu direito de
praticar livremente sua religião, conforme a liberdade de religião assegurada
na Constituição. Argumentou tratar-se de prática religiosa secular entre os
indígenas e que, no meio urbano e arredores, contaria com mais de 50 anos de
uso, que se tratava de uma religião popular e que nos dias de grandes festejos
compareciam as autoridades locais, como governadores, prefeitos, parlamentares
federais e estaduais, pessoas de todas as classes sociais, evidenciando que se tratava
de uma religião integrada à paisagem moral e cultural da região, sem registro
de malefícios à saúde física ou mental de seus adeptos.
O então juiz federal Ilmar Galvão, que
posteriormente se tornou ministro do Supremo Tribunal Federal, determinou que a
PF explicasse as razões da proibição. A PF justificou que a bebida continha
substância capaz de causar dependência psíquica. Juntou três laudos divergentes
quanto à composição da bebida. A sentença de Ilmar Galvão reconheceu que os
laudos eram imprestáveis tanto para demonstrar a composição química da bebida
quanto sua periculosidade ou nocividade.
“Não se sabia se alguma das substâncias proibidas se
encontrava presente na bebida, mas a proibição foi mantida, com a afirmação de
que a ausência de prova da periculosidade não ensejava a conclusão de que o
preparo e uso da bebida fossem lícitos”, lembra o magistrado.
Existem inúmeros estudos (antropológicos,
sociológicos, psicológicos, musicais, farmacológicos, químicos, médicos sob
várias perspectivas e em várias idades e estados etc) sobre ayahuasca. Porém, a
arena onde as batalhas acerca do reconhecimento da legitimidade de seu uso se
deu e se dá é no campo do direito. Apesar dessa circunstância, não havia um
estudo jurídico que investigasse as decisões em si mesmas, sua estrutura
interna, sua lógica e argumentação. Quando muito havia alguma pesquisa que
descrevia as decisões, mas não havia uma crítica sistematizada acerca de seu
conteúdo.
A pesquisa busca iniciar o debate ao sugerir um
referencial a partir do qual o assunto possa ser visto sob um prisma comum, ao
afirmar que devem decidir ou propor alguma teoria mais ampla acerca de como as
diferenças devem ser tratadas em sociedades complexas.
Jair Facundes, juiz federal há 13 anos, tem mestrado
em Constituição e Sociedade pelo Instituto Brasiliense de Direito Público
(IDP), em Brasília. Ele integrou o Grupo Multidisciplinar de Trabalho da
Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), em 2006, que elaborou a
resolução que regulamentou o uso religioso da ayahuasca no país e é membro do
Grupo de Trabalho Legislação sobre Drogas, do Conselho Nacional de Políticas
sobre Drogas (Conad/Senad), ligado ao Ministério da Justiça.
A pesquisa fornece elementos capazes de aumentar a
qualidade do debate jurídico sobre ayahuasca a policiais federais, delegados,
promotores, juízes e agentes públicos com atuação decisiva na questão. Muitos
desses profissionais, oriundos de estados fora da Amazônia, se veem obrigados a
decidir a cultura local, e o fazem sem maiores elementos e contextualização,
adotando pré-concepções e correndo o risco de incorrer em preconceito.
Num resumo, a pesquisa versa sobre o que é um
direito fundamental, seja a liberdade religiosa, seja a liberdade de expressão,
seja a igualdade etc. Por incrível que pareça, há várias definições que
determinam vereditos diferentes. A pesquisa examina o que é um direito a partir
de um caso concreto: a ayahuasca.
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