Maria Encarnação Sposito (foto), professora livre-docente
de geografia urbana na Universidade Estadual Paulista (Unesp), entende que as
manifestações do Movimento Passe Livre mostram a necessidade de um debate sobre
a função social das cidades. Embora tenham ocorrido melhorias na renda de boa
parte da população, com mais pessoas tendo acesso a bens - automóveis e
eletrônicos - e ao crédito para compra da casa própria, há, ao mesmo tempo, uma
piora das condições espaciais e de mobilidade.
Acompanhe entrevista com a professora concedida a
Valor:
Valor:
Os protestos jogam luz à discussão sobre como estão estruturadas as cidades?
Maria
Encarnação: Acho que esse movimento fez emergir na
sociedade essa carência de um debate muito maior sobre quais são as lógicas que
orientam a produção do espaço urbano e como elas vêm se aprofundando no período
atual. São lógicas cada vez mais comandadas pela dimensão econômica e cada vez
menos preocupadas com a dimensão social que a cidade precisa e deve exercer.
Valor:
Como isso se evidencia?
Encarnação:
A evidência mais forte do aprofundamento do papel econômico da cidade em
detrimento ao seu papel social é a contradição que vivemos hoje. Estamos em um
período em que a economia do país vai bem, há efetiva melhoria do poder
aquisitivo das pessoas, do emprego, e há ampliação do crédito para casa
própria. São fatores positivos para inclusão de segmentos da população que
estavam fora das possibilidades de participar do mercado 20 anos atrás. Mas
essa mesma lógica torna a cidade tão mais cara que há melhorias econômicas da
maior parte das famílias, mas ela vem acompanhada de um piora das suas
condições espaciais. Ou seja, eventualmente, podem até ter acesso a uma
moradia, mas essa moradia está mais distante do centro. E ela pode significar
outros custos em função disso. As periferias das cidades, em alguns casos,
estão se afastando espacialmente ainda mais do centro.
Valor:
Esses protestos dizem respeito ao direito à cidade?
Encarnação:
As pessoas têm, em tese, direito à cidade pela legislação, mas esse direito
depende de condições efetivas no cotidiano de se ter acesso a ela. Esse acesso,
em grande parte, está dificultado pelas condições de mobilidade. Não que as
pessoas cheguem a ter consciência de que não têm acesso à cidade e farão um
protesto por causa disso. Hoje, no entanto, o movimento não é mais só sobre o
transporte. Ele acontece em cidades em que não há aumento da tarifa ou onde o
problema do transporte não ocupa a questão central. A partir dele emergiu essa
série de manifestações. E isso acontece pela contradição entre situação
econômica positiva e situação espacial negativa.
Valor:
A senhora costuma utilizar o termo "fragmentação urbana"...
Encarnação:
A fragmentação é quando não há mais espaços de uso de todas as classes sociais
numa cidade. Claro que isso sempre é exagerado, porque há circunstâncias em que
diferentes classes se unem num espaço público. Mas hoje há uma diminuição das
possibilidades desse encontro. E isso é ruim porque significa que a cidade de
quem anda de automóvel é uma e a cidade de quem anda de transporte coletivo,
outra. Existem várias cidades.
Valor:
O sistema de transporte é reflexo desse "modelo"?
Encarnação:
Ele é duas coisas: reflexo e condição. O transporte coletivo ainda funciona
segundo uma lógica do tipo centro-periferia, em que a articulação do sistema se
dá no centro principal da cidade. Em uma metrópole como São Paulo, o sistema é
em grande parte radial. O ônibus sai do bairro para o centro ou ele sai de
bairro para outro bairro, passando pelo centro. Enquanto a cidade é
multicêntrica: há muitos centros. Uma Avenida Paulista é um centro; um shopping
center é um centro. Enfim, há muitas áreas de concentração de atividades. O
carro vai aonde se quer, mas o transporte público não. Quem usa o coletivo está
refém do desenho do sistema e depende do centro, porque é até lá que os ônibus
vão. Mas para quem está de carro, é possível fazer escolhas com maior
liberdade. Então, é uma cidade que separa.
Valor:
Como avaliar o que está por vir?
Encarnação:
Como a sociedade está se organizando de forma muito diferente, como não é mais
o sindicato ou o partido político que conduzem o processo de organização
social, é muito mais difícil também compreender como ele vai transcorrer. Ele é
menos hierarquizado, menos sistematizado. E assim como se organiza rápido pode
se desorganizar rapidamente. Não sei se cabe dizer "de direita ou de
esquerda", mas mostra que é uma organização diferente e por isso é mais
difícil dizer o que vai acontecer.
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