quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

O velador compulsivo

CRÔNICAS DO PC

Sei que você, meu amigo e conhecido, talvez conheça também o Tiburtino. Ele veio das bandas do Piauí, chegando aqui no Pará tem pouco tempo. Faz questão de dizer que sabe o bastante a respeito da história da terra que o viu nascer, a exemplo de Serra da Capivara, “um museu a céu aberto” e berço do Homem Americano.

Tiburtino tornou-se muito conhecido em nosso meio. Ele não é artista, jogador de futebol, escritor renomado, muito menos celebridade que tem dinheiro e vive aparecendo na mídia pela fama que tem.

Nosso piauiense é apenas um motorista aposentado, depois de sofrer um acidente, em seu caminhão, nas estradas esburacadas da região nordestina. Em conseqüência do desastre, teve fratura grave na perna direita. Mesmo depois de ser submetido a uma delicada cirurgia, ficou defeituoso, manca da perna direita, que ficou menor que a esquerda.

Mesmo tendo apenas 45 anos, ficou incapaz para exercer a profissão, e o problema lhe deixa sempre triste. Por outro lado, é um excelente cidadão, sensível e solidário. Tem uma qualidade que nunca vi antes neste mundo, nem em homem, nem em mulher.

Tiburtino não perde um enterro, seja quem for o morto. Para ele não importa. Basta um filho de Deus “bater as botas”, e dirigi-se ao velório, apresenta condolências à família enlutada, senta-se ao lado do ataúde e chora sem parar. E não perde o sepultamento. À beira da cova, o pranto é maior, naquela de falar entrecortado soluçando: Adeus! Sua falta me fará sofrer...!

Raramente acontece o dia em que o fato não se repita. Na cidade onde moramos, de muitas riquezas e população de todos os lugares do Brasil, o povo morre sem parar, de morte morrida, de acidentes, assassinada; cadáveres é que não faltam. A prova maior são as funerárias crescendo de tamanho, fabricando caixões sob medidas e cores variadas, azuis, pretos e marrons.

Reencontrei o Tiburtino em um dia chuvoso de sábado. Foi no velório de um amigo que morreu de apnéia, ou seja, parou de respirar quando dormia. Encontraram-no em rigidez cadavérica, 12 horas depois do passamento.

Fiquei curioso em saber o porquê de sua mania de velar os mortos. Sabe como é, né? Gente que escreve por obrigação é assim, curiosa pra chuchu, querendo saber de tudo, principalmente de procedimentos raros.

Agora me responda: você já viu outra pessoa igual a Tiburtino, um velador de mortos compulsivo?

Vou falar, como diz o paraense: é um negro robusto, de boa presença, sorridente. Mesmo estando chorando, não perde as qualidades de atencioso. Teve uma ocasião que ele me viu em um velório participando das últimas homenagens a uma velha carola, minha vizinha, papa-hóstias nas missas de todos os dias, e que teve morte súbita à porta do confessionário ao revelar um pecado ocorrido nos tempos de jovem, nos braços do namorado, deitados na grama nos fundos do muro da casa dos avós.

A velha carola não suportou o remorso guardado no decorrer dos tempos. A emoção fez o coração dela parar. Não se sabe se por algo inesquecível, imperdoável, ou se por gostosa recordação, de querer e não encontrar o parceiro. O segredo, talvez, só o confessor ficasse sabendo, o mais, a velhota levou para o túmulo. O que se sabe ficou escrito no seu diário.

Ao notar minha presença, Tiburtino levantou-se e veio me cumprimentar, embora os olhos intumescidos pela choradeira não evitassem um largo sorriso, que ficou estampado em seu rosto: Há quanto tempo, meu querido conterrâneo, estou feliz em revê-lo!

Tiburtino falou bem alto, chamando a atenção, para que os presentes ouvissem o nome de nossa importante cidade do sudeste do Piauí. E me abraçou fortemente.

Retribuí os cumprimentos, aproveitando para indagar: a falecida era sua parenta, amiga ou tinha outro vínculo de intimidade? Assim sendo, quero lhe apresentar minhas condolências.

Nada disso! Não precisa! Para falar a verdade, nem a conheço, respondeu.

E por que você chora tanto?

Sinto uma alegria imensa de chorar pelos mortos.

Danou-se! Não entendi patavina, justamente pela satisfação de chorar...

Explico. Grave bem: se eu não posso sorrir pela situação difícil dos vivos, iguais a mim, desiguais, injustiçados, motivos que nos fazem sofrer, derramar lágrimas é uma maneira que encontrei de extravasar meus sentimentos de revolta. Nada mais original do que ao lado de um defunto. Concorda?

Entendi. Foi aí que fiz as estatísticas negativas do país em que vivemos. Pensei nos menores abandonados; nos milhões de menores carentes; nos desempregados; nos sem-teto; nos verdadeiros sem-terra, na fome; na pobreza; na miséria; na violência; nos engodos dos políticos, os causadores maiores da desesperança, e cheguei à conclusão: Tiburtino tem razão de viver derramando lágrimas, embora escondendo na farsa o motivo de viver chorando.

Pedro Cláudio de Moura Reis (PC) / E-mail: pcmourareis@yahoo.com.br

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