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Contardo Callegari - Em 1992, na votação do impeachment de Collor,
suspendi o consultório e me instalei na frente da televisão. Na
minha lembrança, os pronunciamentos dos deputados não foram muito
melhores dos de domingo [17]
passado,
mas davam
para tolerar tudo, porque o espírito era diferente: havia no ar um
gosto de liberdade conquistada.
Hoje,
penso assim: caso uma votação desse tipo volte a acontecer, peço
encarecidamente que o regulamento da Câmara dos Deputados exija o
voto sem pronunciamento: o deputado leu o relatório da Comissão
Especial de impeachment, formou sua opinião e anuncia: "voto
sim" ou "voto não". Pronto.
Desta
vez, só se salvou da depressão quem passou a tarde nas
concentrações: exultaram ou choraram, mas pela boa razão que
ganharam ou perderam. Para os que encararam o espetáculo da votação
na televisão, sobrou uma depressão que ainda dura, tanto nos que
perderam quanto nos que eram a favor do sim. É uma sensação de
desamparo absoluto: duvidando de quem nos governa, recorremos a quem
nos representa. E, diante da tela de TV, surgiu a pergunta: são
estes, então, que nos representam?
O
UOL fez a conta: dos 367 sim, apenas 16 falaram dos crimes que o voto
deles queria castigar. O resto invocou sua família, seu quintal
eleitoral, a netinha que fazia aniversário, os filhos dormindo, o
velho pai, deus, deus de novo (outro ou o mesmo, tanto faz),
posicionou-se contra a proposta de que crianças troquem de sexo,
pelos moradores de rua ou por você, mamãe.
Em
sua grandíssima maioria, os representantes invocavam seus afetos
familiares e sua escolha religiosa na hora de cumprir seu dever
republicano. Essa confusão do privado com o público é a própria
praga que alimenta a corrupção: a vida pública é parasitada por
afetos privados que nem precisam ser escusos porque, "afinal",
a família é o que mais importa aos "homens de bem". Não
é?
Tudo
isso era triste. E chegou a vez do deputado Jair Bolsonaro, que
disse: "Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra,
o pavor de Dilma Rousseff''.
Carlos
Ustra foi chefe do DOI-Codi de 1970 a 1974. Agitando o espantalho de
um sociopata torturador, Bolsonaro quis apavorar Dilma Rousseff, a
torturada que resistiu à tortura.
Jair
Bolsonaro se confundiu. O grito do torturado já vale mais do que a
palavra e o ato de qualquer torturador. E o silêncio do torturado é
a vitória final sobre o torturador. Ustra não é o pavor de Dilma.
Dilma é o pavor de Ustra.
Bolsonaro
deve ter pensado que um bom número de deputados acharia graça. A
única reação será a de Jean Wyllys? Noemi Jaffe tuitou: Bolsonaro
homenagear Ustra é como um neonazista homenagear Mengele, que
torturou minha mãe.
No
domingo, consternado pela explosão de afetos privados dos deputados,
eu era indeciso entre a decepção com os anos de PT e a perplexidade
diante do que seria, como disse o ministro Barroso, a "alternativa".
Não
mudou nada. Mas sei reconhecer o fascismo quando ele tenta falar
alto. E essa é uma feiura contra a qual, desde pequeno, aprendi que
é preciso resistir.
Em
1947, Albert Kesselring, comandante das forças nazistas de ocupação
na Itália, foi condenado à morte por crimes de guerra. A sentença
foi transformada em prisão perpétua.
Em
1952, Kesselring, doente, saiu da prisão. Foi celebrado como herói
pelos neonazistas e declarou que ele tinha sido tão bom com os
italianos que eles deveriam lhe erigir um monumento.
Piero
Calamandrei, resistente, jurista, escritor, um dos fundadores do
Partido de Ação (não comunista), escreveu um poema, que dedico
agora a Bolsonaro:
"Você
o terá, camarada Kesselring, / o monumento que você pede de nós,
italianos. / Mas com qual material será construído, / isso a gente
decidirá. / Não será com as pedras chamuscadas / das aldeias que
foram supliciadas por teus exterminadores. / Não será com a terra
dos cemitérios / onde nossos jovens companheiros / descansam
serenos. / Não será com a neve inviolada das montanhas / que
durante dois invernos te desafiaram. / Não será com a primavera
destes vales / que te viram fugir. / Mas será com o silêncio dos
torturados, / mais duro que qualquer pedregulho; / será com a rocha
deste pacto / jurado entre homens livres / que voluntários se
reuniram, / por dignidade e não por ódio, / decididos a redimir a
vergonha e o terror do mundo."
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Italiano, psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor.
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